Opinião

Discurso Directo!

O discurso directo é uma figura que existe na gramática da língua portuguesa, “caracterizado por ser uma transcrição exacta do discurso das personagens, sem participação do narrador”.

            Na nossa República o discurso ultrapassa os níveis da sensatez. Algumas bolsas de cidadãos utilizam por vezes, na via pública, um vocabulário exagerado, roçando a obscenidade, como se não houvessena sociedade, indivíduos com perfil que possa servir de «modelo» na sua conduta.  

Contudo, os detentores do Poder, que, por razões óbvias, representam ao mais alto nível o “rosto” da Nação utilizam uma prosa discursiva tão atípica que se aproxima da brejeirice.

            Falo, enquanto cidadão e chefe-de-família, de um momento inédito registado na República Democrática de São Tomé e Príncipe. Antes de mais, quero ressalvar que a expressão chefe-de-família já nem faz grande sentido na minha perspectiva, uma vez que esse papel é, na actualidade desempenhado, quase na íntegra, pela mulher.

            Não é admissível dois dirigentes que já exerceram altos cargos no aparelho do Estado, nomeadamente o de Ministro da Educação e Cultura e Primeiro-Ministro e, o de Ministro dos Negócios Estrangeiros e, o de Primeiro-Ministro, respectivamente, possam utilizar nos órgãos de comunicação social (RTP-África) insultos que envergonham o «homem de rua» e faz corar o mais comum dos mortais.

            Não basta ter estudado em Universidades estrangeiras para se lograr ser dirigente de um país. Existem pré-requisitos que precisavam fazer parte da cartilha que os cidadãos deveriam observar para se candidatar a cargos públicos.  

No nosso país, esses pré-requisitos ainda não fizeram «Escola». Chega-se aos cargos da administração pública aboletadapela militância e empenho fervoroso no Partido. A competência, as habilitações literárias, o rigor e a capacidade de trabalhar em equipa, soçobram num pântano de incompetência misturada com a corrupção.

Ambos os protagonistas São-Tomenses, em causa, estudaram num país com uma tradição secular, que fez uma Revolução ocorrida em 1789, que produziu escritores como Victor Hugo (1802-1885), Alexandre Dumas, pai (1802-1870), Émile Zola (1840-1902), que tem o maior número de prémios de Literatura na história do Nobel como: Albert Camus (1913-1960); Claude Simon (1913-2005); Annie Ernaux (n. 1940), a primeira mulher francesa premiada com Nobel da Literatura. Necessário se torna dizer que esses prémios pretendem exaltar a importância que tem a EDUCAÇÃO como veículo de mobilidade social, de emancipação e de CULTURA de um país.

Os nossos dois protagonistas, pelos vistos, não se integraram no ambiente académico das universidades por onde passaram, nem tão-pouco tiveram a curiosidade de viver e conviver com estudantes de outras nacionalidades. No local onde estudaram, terão vivido, provavelmente, num «gueto» estudantil, cultural e social.

O que parece ser mais grave, resultante da permanência no tal «gueto», é que não terão assimilado, provavelmente, os cânones do civismo, da decência e da integridade moral e pessoal que se exige aos representantes dos Órgãos de Soberania.

As novas causas da Cruzada

            As cruzadas eram expedições religiosas e militares realizadas por cristãos que pretendiam resgatar a Terra Santa aos muçulmanos/islâmicos, entre os séculos XI e XIII.

            Os dois dirigentes que se posicionam como baluartes dessas duas religiões aparentam ser o prolongamento de uma nova versão dessas cruzadas, desencadeadas presentemente no século XXI, num arquipélago de pequenas dimensões territoriais e com uma população que não ultrapassa as duas centenas e meia de milhares de habitantes.

            Numa breve relação avançámos o percurso de ambos:

O primeiro representante, cristão praticante, nasceu a 26 de Julho de 1962, na freguesia da Conceição, ilha de São Tomé. Fez os estudos primários e, liceal em São Tomé. Frequentou a Universidade de Toulouse, França (licenciatura e mestrado) e uma pós-graduação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sobre a pedagogia da língua francesa. Exerceu cargos de relevo como Secretário-Geral da Comissão Nacional para a Unesco, Director da Biblioteca Nacional, Presidente da Aliança Francesa. Foi Professor da Universidade Pública de São Tomé e Príncipe. Militante do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe/PSD, foi ministro da Educação e Cultura (2008-2010), novamente Ministro da Educação, Cultura e Ciência (2012- 2014), Primeiro-Ministro e chefe do 17.º Governo Constitucional (2018-2022). É membro da Academia São-Tomense de Letras.

O segundo representante, muçulmano, nasceu a 18 de Março de 1962, em Libreville, Gabão. O pai foi um dos fundadores do Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP) e, em 1972, transformado em Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). Eleito presidente da Acção Democrática Independente (ADI), foi ministro dos Negócios Estrangeiros (2001-2002), Primeiro-Ministro de São Tomé e Príncipe em duas ocasiões, (2008-2010) e, (2014-2018).

Enfim, estes os perfis que se “digladiam”, se assim se pode dizer, em público provocados que foram pelos contornos dos acontecimentos de 25 de Novembro de 2022, no Quartel-general das Forças Armadas, leva-nos a suspeitar da partidarização das instituições estatais no País.

A sinuosidade da partidarização das instituições

            Tenho referido nos artigos de opinião insertos no jornal Téla Non, a minha preocupação relativa a excessiva partidarização da nossa sociedade. Este tentáculo, ritualizado pelo polvo partidário chegou onde não era suposto chegar: às Forças Armadas, para satisfação dos «senhores donos dos Partidos Políticos».

Já não temos no país qualquer instituição que não esteja capturada pelas garras silenciosas dos Partidos Políticos.

Essa selvática tentação surpreendeu-nos a todos no fatídico dia 25 de Novembro de 2022, onde a barbárie se instalou para gáudio dos seus carrascos os militares que torturaram e mataram com requintes de malvadez, quatro cidadãos.

Ao longo da nossa história, as nossas Forças Armadas só tiveram, salvo raras excepções e, observando-se os dados disponíveis, dois «Cabos de guerra» dignos da farda que envergaram: o Comandante Albertino Neto e o Brigadeiro-General Olinto Paquete.

O primeiro foi elogiado pelo Dr. Carlos Graça no seu livro “Memórias Políticas de um Nacionalista Santomense sui Generis” (2011), editado pela UNEAS, pág. 114. O Dr. Graça relata em primeira pessoa que, “(…) em longas conversas, às vezes pela noite dentro, tentei convencê-lo a desencadear um golpe de Estado […] Não consegui demovê-lo da sua posição legalista e de servidor puro da Ordem estabelecida e do Estado legítimo!”. Conclui dizendo que Albertino Neto era “um patriota impoluto, espartano, com qualidades militares excepcionais de disciplina, ética e responsabilidade …”.

O segundo, não se confirmando o contrário, é o Brigadeiro-General, Olinto Paquete que, num pronunciamento inédito no nosso país e, também, no continente africano – no qual nos inserimos – disse no seu discurso de pedido de demissão, resultante da designada «Tentativa de Golpe de Estado», o seguinte: “(…) Parece-me que foi uma encomenda […] Coisas que eu não sabia, porque me informaram com dados falsos, e proferi informações falsas à nação, pelo que peço desculpas”. (in jornal online, Téla Non, 1/12/2022).

Esses gestos, nobres só honram militares dignos e com uma postura consentânea com os preceitos do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), verdade seja dita.

Nota conclusiva

            Costuma dizer-se, utilizando uma frase idiomática da língua Forro, que glávi ná ká péga fá, sélá fê, que é como quem diz, dá-se prioridade ao que é nocivo em detrimento do que é sadio.  

Esta expressão do Forro é, aqui utilizada para simbolizar a governação feita pelos dois protagonistas que, viajam muito, no decorrer dos respectivos mandatos, percorrendo várias milhas pelo mundo inteiro e, aparentemente, nada aprendem em relação a esses «ensinamentos».

Enquanto persistem desavenças constata-se: o deficiente abastecimento de energia eléctrica e a ausência frequente de água potável representam a caricatura de um país que pretende ter um turismo de qualidade; os nossos aeroportos estão praticamente inoperacionais; os nossos Centros de Saúde e Hospitais têm a canalização enferrujada porque a água escasseia, não têm aspirina e paracetamol para os cidadãos que para lá se dirigem, as parturientes vivem momentos de angústia na marquesa da maternidade; as nossas Escolas não têm, em muitos casos, casas de banho, recintos desportivos, manuais escolares, laboratórios, auditórios para aulas de educação musical, nem pequenas bibliotecas; a aparente desarticulação da administração pública é uma evidência; o sistema judicial apresenta lacunas preocupantes;os jovens nascidos depois da independência, regra geral, nunca viram filmes projectados numa casa de cinema, desconhecem como é que se processa uma peça de teatro, não sabem o que é um concerto musical, não conhecem, ou nunca ouviram falar de escritoras e escritores, poetizas e poetas São-Tomenses, nem tão pouco ouviram falar do Prémio Literário “Francisco Tenreiro”; uma parte significativa da população desconhece qual o papel atribuído as Câmaras Municipais/Distritais, pois na capital – a cidade de São Tomé – o Poder Central apoderou-se do nosso emblemático edifício da Câmara, uma herança de tempos idos e, não nos quer devolver.  

           O Poder Central teve uma atitude indigna em relação a este problema: a Câmara do Distrito de Água Grande está, desgraçadamente enfiada num pardieiro e numa rua sorumbática. É desprestigiante para a cidade-capital e inaceitável perante os munícipes.

Tudo isso leva-me a interrogar e, em voz alta, porque enquanto não se resolver com urgência o imbróglio gerado pelos acontecimentos fatídicos de 25 de Novembro de 2022 não estarão criadas condições para que no País haja calma e tranquilidade tão necessários para a equação das necessidades que afligem a nossa população.

Lúcio Amado 

8 Comments

8 Comments

  1. Toni

    9 de Março de 2023 at 13:47

    Caríssimo, gosto sempre das suas opiniões, todas carregadas de sabedoria e conhecimento da realidade.

    Contudo questiono, quando é que os intelectuais e pensadores em Stp conseguem questionar o porquê da independência ou autonomia, tendo em conta a população do país??

    Porquê que os governantes desde a Independência, não são julgados por crimes contra o país??? É que somente destruíram…

    Haveria mais questões, enfim estas chegam.

    Fui

    • Heleno Mendes

      10 de Março de 2023 at 4:10

      Caro Lúcio Amado,

      O considero um patriota impoluto.

      Este artigo ilumina e ilustra os aspectos candentes que afligem a sociedade Santomense.

      Quem quer mudar o presente que estude o paasado. Parte do nosso passado fará o nosso futuro.

      Cumprimentos,
      Heleno Mendes

  2. Fôrro Cacau

    9 de Março de 2023 at 21:40

    Caro Lúcio Amado, a sua crónica é de facto, digna de respeito e pela mesmo, tiro-lhe o chapéu.
    É um texto pensado e cheio de observações realistas.
    A verdade é que a política em STP domina o quotidiano. Se quem opina tivesse bom senso, certamente o nosso país teria outro nível social e económico. Mas infelizmente, não. A política é isso políticos do país são podres.
    Assistimos a um desabafo de PT relativamente a JBJ que, não sendo de todo de elogiar, vem na sequência de um conjunto de mentiras, aldrabices e imputações que os seguidores do segundo e pertencentes à oposição, puseram a circular (aliás, método característico e singular dos regimes de esquerda: Rússia, cubanos e angolanos).
    Já quanto à JBJ, a sua entrevista é carregada de mentiras, desculpas e sacudidelas de responsabilidades. É verdade que ele sabia da preparação do 25/11. Claro que sabia. Recusou dezenas de pedidos do Arlécio. Sabia qual era o assunto que o Arlécio queria discutir. Claro que sabia. Mas sabia também que o Delfim tinha obtido as concessões por sua ordem. E sabe também que prejudicou o estado santomense com o perdão das taxas ao Delfim. Foram milhões perdoados com o pretexto que STP iria criar grandes empreendimentos.
    O povo tem de deixar a política de lado. Quando deixar de olhar para tudo com olhos bêbados de política perceberá finalmente quem são os corruptos e bandidos que depenam o país.
    Nessa altura talvez as instituições tenham força para julgar os criminosos qye arrastam São Tomé para a falência e miséria.

  3. Chum Sacramento

    10 de Março de 2023 at 10:27

    A Independência é inquestionável, todos aqueles que a colocam em causa são Traidores da Pátria e Inimigos do Povos. S.Tomé e Príncipe é um jovem Estado em Construção, por essa razão sofre com os problemas que todos sabemos até chegar a uma Consciencialização Coletiva. Todos temos a Responsabilidade de continuarmos a Trabalhar Arduamente por o tão almejado crescimento e desenvolvimento é um processo inter-geracional.

  4. Dionelo dos Santos

    10 de Março de 2023 at 13:07

    Muito obrigado Sir Lúcio. Não sei o porquê que lutamos todos para ir a escola enquanto alguns que hoje são doutores vindo não sei de onde e nos governa em pleno século XXI enquanto impávidos observamos sem se poder pronunciar.É clarinho como água da Madalena de cor cristalina que me apercebi que estamos sem rumo totalmente desnorteado e pergunto o porquê desta independência? Para matarmos uns aos outros? Para vivermos no nosso País como estrangeiro? Daí que melhor seria repensar S.tomé e Príncipe. Coisas nunca visto como este de 25 de novembro de 2022 no local onde esperavamos obter segurança e que juraram pela Pátria em defender com zelo e escroporosamente o País e não partidos indisciplinados e sem berço. Para além de querermos conhecer o mandante deste filme e colocar-lhe atrás das grades urge reformar de Raíz as Forças Armadas do País custe o que custar.Um bem haja.

  5. SEMPRE AMIGO

    10 de Março de 2023 at 18:18

    A porta de saída segura deste labirinto sinuoso em que,há décadas,os “políticos”santomenses nos meteram passa obrigatóriamente por um DIALOGO NACIONAL,a busca de CONSENSOS sobre problemas estruturais de um pequeno país a procura de um rumo seguro, capaz de lhe garantir um desenvolvimento sustentável , respeito e consideração dos países do GOLFO da GUINÉ e da comunidade internacional.Concordo consigo,Doutor LÚCIO AMADO,quando opina:”Tudoisso leva-me a interrogar e,em voz alta,porque enquanto não se resolver com urgência o imbróglio gerado pelos acontecimentos fatídicosde 25 de Novembro de 2022 não estarão criadas condições para que no país haja calma e tranquilidade tão necessários para a equação das necessidades que afligem a nossa população”.-Fim da Citação.Antes disso não haverá clima para dialogo nenhum!

  6. Célio Afonso

    11 de Março de 2023 at 9:30

    Excelente reflexão. Porém, na minha opiniao, a pergunta final devia ser: para que serviu a independência total? Para os políticos se servirem dos partidos para fins pessoais e familiares?
    A verdade é que desde 1975 que o país vive aos sobressaltos até a presente data, tendo culminado com o bárbaro massacre de 25 de Novembro. Nunca me passou pela cabeça que o quartel esteja albergando assassinos do tipo!

  7. Gentino Plama

    11 de Março de 2023 at 19:42

    Referente a troca de palavras entres as figuras na verdade nada nos dignifica.
    Não há paciência quando se sabe que neste preciso momento, um dos protagonistas deveria está privado da liberdade e ou, esteja sob a custódia da polícia, devido ao suposto envolvimento deste nos atos macabra que ocorrerá no dia 25 de Novembro no Quartel. Há quem diga que, não existe qualquer ligação deste com o caso. Na qualidade do chefe do estado, imediatamente, proferiu declaração a Nação que de alguma forma, merece o respeito e a consideração por parte deste, pois, a sua ascensão a tão elevado posto, deveu-se a confiança desta mesma nação a referida pessoa. Porém, se este teria sido induzido em erro, nada lhe envergonharia em reconhecer a sua inocência, desculpando-se. Ele mentiu a nação; assumiu a sua mentira, e tem feito dela a palavra do rei.
    De forma indireta, e sem um mínimo de sensatez, tem feito valer a sua posição, deixando entender que, terá sido o próprio, o mandante do ato macabra. Muitos expedientes têm sido feitos como forma de o ilibar das culpas. O Procurador-Geral da república passou a ocupar o lugar do frigorífico; o Presidente da República é o próprio primeiro-ministro, isso porque limita-se o receber as ordens; a polícia judiciária está submisso a Ministra da Justiça, e desta feita, o Chefe de Estado-maior General das Forças Armada, é outro ao serviço do primeiro-ministro. Portanto, as principais máquinas do estado estão reféns ao dito primeiro-ministro.
    O seu passar por cima de tudo, e de todos, tem a ver com a vergonhosa investigação tornada público, que em nada o referiu. Para o mesmo, isso foi um ganho, colocando-o na qualidade do senhor todo-poderoso.
    O Relatório da CEEAC já foi entregue ao Presidente da República que terá dito que o Chefe do governo encontrava-se ausente e, que aguardava a sua chegada.
    Ainda encontra-se ausente?

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