Ultimamente, tendo em conta a comemoração do trigésimo aniversário da institucionalização da Autonomia da R.A.P, que se realizou no passado dia 29 de Abril, tem aparecido, algumas vozes isoladas, em alguns jornais, na rádio e nas redes sociais, questionando a celebração da referida data no contexto regional, recorrendo a banalidades desprovidas de qualquer sentido racional, invocando, como único argumento, algumas situações socioeconómicas desfavoráveis, ainda prevalecentes no referido contexto regional, levando este posicionamento ao extremo, e, com tal, sugerindo, objectiva ou subjectivamente, que seria melhor a população do Príncipe abdicar do caminho de regionalização autonómica, trilhado até então, e regressar ao Centralismo Estatal caracterizador da nossa vida comunitária após a independência nacional.
Contudo, a maior pérola que encontrei, no meio destes disparates todos, foi esta que li no jornal Téla Nón cujo autor do texto escreve o seguinte: «…Muitos serviços continuam centralizados na vila de Santo António, sem presença efetiva nas comunidades…». O autor do texto em causa deveria saber, se é que não sabe, que Santo António não é uma vila, desde o século XVI, altura, aliás, que passou a ser a capital do país (sim, do país) durante cerca de um século. Qualquer aluno, com pelo menos 6.ª classe, no nosso país, deveria saber este facto histórico básico relacionado com a nossa comunidade.
O problema, contudo, é que este é um exercício analítico especulativo, faccioso e panfletário, em torno da temática da Autonomia Regional, que permite as pessoas em causa dizerem os maiores disparates, sem saberem nada daquilo que estão a dizer ou escrever, fazendo-me lembrar aquela anedota associada a um bêbado que acaba de sair de uma taberna, de madrugada, completamente embriagado.
Tendo perdido as chaves de casa, o referido bêbado, temendo pela gravidade do acontecimento, resolve mobilizar as pessoas para que estas lhe ajudassem a encontrar as referidas chaves num lugar completamente escuro ou com pouca luz, à saída da referida taberna. As pessoas ajudaram-no na tarefa em causa, vasculhando ao milímetro todos os cantos por onde ele estivera anteriormente, até aquele momento. Todavia, não encontraram as chaves e, no entanto, o bêbado em causa repara, que, num lugar, relativamente distante daquele onde toda a gente procurava as referidas chaves, existia uma pequena luz. Mesmo não tendo estado naquele lugar, onde existia um pouco de luz, em nenhum momento, o bêbado, contrariando a opinião de todos aqueles que o ajudavam a encontrar as chaves em causa, dirigiu-se para lá com o objetivo de continuar a procurar as chaves que perdera, tendo como argumento para o seu tresloucado ato o facto de, aquele lugar, pelo menos, ser o único onde existia um pouco luz.
É exactamente isto que pensei quando ouvi e li algumas críticas avulsas questionando a celebração da referida data no contexto regional. Este exercício analítico, contudo, comparável ao comportamento do bêbado que referi anteriormente, não faz referências, em nenhum momento, ao aporte negativo que o Centralismo Estatal provocou no contexto regional, voluntária ou involuntariamente, durante quase 50 anos (sim, 50 anos, porque ainda se faz sentir com alguma intensidade, apesar da suposta Autonomia), em termos de intervenção decisória direta na ilha ou, em alternativa, ao desinvestimento discriminatório imposto, que quase matou a R.A.P, do ponto de vista socioeconómico e cultural, condenando-a ao propósito de periferização, cuja receita para correcção ou remediação a região ainda não encontrou; nem, tão pouco, faz referência a ausência de instrumentos que deveriam servir de suporte ao propósito de materialização da referida Autonomia, designadamente uma Lei de Finanças Regionais bem como a possibilidade da região explorar os seus recursos naturais, incluindo o ambiente marinho, com o objetivo de promover o desenvolvimento regional e, consequentemente, melhorar a qualidade de vida dos seus residentes, como, aliás, o referido Estatuto Político e Administrativo faz referência.
Quando eu era adolescente, ainda na primeira república, eu e todos os colegas da minha geração, por exemplo, tínhamos que deslocar para a nossa ilha maior, S.Tomé, a partir do sexto ano de escolaridade (atual sexta classe), com apenas 12 ou 13 anos de idade, para podermos continuar os nossos estudos, longe das nossas famílias, dos nossos amigos e de toda a envolvência sociocultural do contexto de origem, com impacto indisfarçável no processo de consolidação da minha/nossa identidade. Uma vez em S.Tomé, onde acabei por concluir o Liceu, só esporadicamente, nas férias escolares, mantinha contacto com os meus familiares, os meus amigos e com toda a envolvência sociocultural regional, antes de abandonar o país para continuar os meus estudos em Portugal.
Com isso, o Centralismo Estatal vigente na primeira república e que continuou com a democratização do país, após 1991, quase que matou a cultura do Príncipe, com este processo de evacuação forçada dos seus melhores filhos para S.Tomé, numa idade propícia à apropriação cultural através da interacção social e da experiência, amputando-os das condições existentes no contexto original, eventualmente mais favorável, que permitiriam o aprofundamento ou consolidação dos valores da identidade regional, amplificado por um processo de aculturação endógena, voluntária ou involuntária, concebido no país, que os meios de comunicação social, designadamente, a rádio pública e mais tarde a televisão, promoviam de forma indisfarçada.
Foi a institucionalização da Autonomia Regional e esforços dos diversos governos regionais, incluindo o atual, que criaram as condições, por exemplo, para que os alunos do Príncipe, com 12 ou 13 anos de idade, não tivessem que deixar a sua terra, com tão tenra idade, e pudessem prosseguir os seus estudos, até ao 12.º ano de escolaridade, na ilha do Príncipe, onde pudessem usufruir, no âmbito da oferta curricular, por exemplo, da possibilidade de aprendizagem do Lung’iê nas escolas do Príncipe.
Creio mesmo que esta foi a maior conquista da Autonomia Regional que proporcionou a construção de escolas, jardins-de-infância e creches em quase todos os pontos da ilha. É óbvio que as gerações mais novas, que não passaram por aquilo que a minha geração passou, não estão identificadas com estes constrangimentos que o Centralismo Estatal proporcionou, com custos, ainda hoje, nos contextos social, económico e cultural da região.
Poder-se-á dizer que tudo está bem no âmbito do sistema educativo no contexto regional? Não! Há muito a fazer, ainda, no âmbito da gestão escolar, da formação e avaliação dos professores e educadores, da oferta curricular, da qualidade e avaliação das aprendizagens, dos meios ou infra-estruturas de apoio ao ensino e aprendizagem, etc. É isto que nos deveria mobilizar, interna e externamente, em termos de debate público e não a evocação errónea de uma suposta falência da Autonomia Regional perante os constrangimentos socioeconómicos prevalecentes, ainda, no contexto regional. Este é um exemplo claro de que o Centralismo Estatal falhou e a Autonomia Regional fez melhor.
Quando eu sai do Príncipe para estudar em Portugal, em 1984, os meios de produção, nomeadamente as empresas agrícolas, no contexto regional, estavam em falência, ao nível de gestão e de produção de bens para exportação, com grave carência de mão-de-obra, com trabalhadores com salários em atraso e com infra-estruturas de produção e respetivos patrimónios empresariais em autêntica ruína. Passado algum tempo, na primeira metade da década de 90 do século passado, constatei, após umas férias na ilha, que Porto Real, Sundy, Belo Monte, Paciência, Infante D. Henrique, Bela Vista e outras empresas no contexto regional transformaram-se em lugares de “depósito de gentes” sem meios de subsistência e sem qualquer esperança.
Foi este o contributo que o Centralismo Estatal prestou ao Príncipe, durante décadas, que quase matou toda a estrutura produtiva económica regional.
Só após a institucionalização da Autonomia Regional que os anteriores Governos Regionais e o actual, criaram as condições, ao nível de atracção de investimentos estrangeiros para a ilha, permitindo, com tal, a transformação em curso da estrutura produtiva regional, com a aposta feita no turismo e na defesa do ambiente, que tem contribuído para alguma dinamização da economia regional e, simultaneamente, salvar o património de algumas empresas agrícolas, como Sundy, Belo Monte e Paciência, por exemplo, que estavam completamente ao abandono.
O propósito de produção intensiva de óleo de palma, na R.A.P, proposta pelo Governo Central, quase que de forma impositiva e inegociável, sob forte pressão e ameaças, só não foi avante pelo facto do Governo Regional, no âmbito das suas atribuições, em articulação com a população do Príncipe, ter declinado a referida proposta por razões relacionadas com a protecção do seu património florestal e a biodiversidade da ilha. Esta foi, por isso, uma escolha consciente e participada da população do Príncipe, de acordo com os objectivos do Plano de Desenvolvimento Regional, que só foi possível num contexto da Autonomia Regional e que permitiu, posteriormente, que a região passasse a fazer parte da rede Mundial de Reservas da Biosfera da UNESCO em 2012. O Centralismo Estatal faria, necessariamente, o contrário, como pretendiam e fizeram durante ou últimos 50 anos, e uma parte significativa do território da R.A.P estaria, neste momento, sujeita aos impactos ambientais decorrentes da exploração intensiva do óleo de palma, como acontece com uma parte significativa da nossa ilha maior, com todas as consequências nefastas para as gerações futuras.
Foi a Autonomia Regional que evitou este atentado ambiental, contra a vontade do Centralismo Estatal. A R.A.P seria, hoje, tendo em conta os objetivos propostos para o seu desenvolvimento, muito diferente, se a vontade impositiva do Centralismo Estatal triunfasse sobre a defesa dos valores da Autonomia, neste âmbito específico, tendo em conta a exiguidade territorial insular em presença e a área eventualmente mobilizável para a expansão das plantações de palmeiras para a produção de óleo de palma bem como a desflorestação associada ao propósito em causa com perdas de habitats para diversas espécies e respectiva biodiversidade.
Por sua vez, a população da R.A.P nunca esqueceu que foi este mesmo Centralismo Estatal, que, num ato discriminatório incompreensível, promoveu iniciativas para que somente a nossa ilha maior, S.Tomé, estivesse hoje ligada por Cabo submarino de fibra ótica, deixando a R.A.P fora deste propósito, ao contrário daquilo que, por exemplo, Cabo Verde fez, apesar da sua maior complexidade arquipelágica, ligando todas as suas ilhas habitadas por esta infra-estrutura, com todas as consequências inerentes, que, poderiam contribuir para amplificar a periferização do Príncipe.
Por outro lado, a população do Príncipe não compreende que, há muitos anos, nenhum estudante da R.A.P que termine o 12.º ano no contexto regional, independentemente do seu desempenho escolar, seja contemplado com uma bolsa de estudos para o estrangeiro com o objetivo de prosseguir os seus estudos superiores. Já no meu tempo a situação não era assim tão diferente, apesar de algumas migalhas, neste âmbito, que eram atribuídas aos alunos do Príncipe É assim que o Centralismo Estatal tratou a R.A.P, durante 50 anos, privando-a de instrumentos básicos necessários para a efetivação concreta da referida Autonomia.
Por isso, o balanço que se tem de fazer da Autonomia não pode estar associado, redutoramente, aos problemas socioeconómicos prevalecentes, ainda, no contexto regional, mas também, relativamente àquilo que se evitou que o Centralismo Estatal fizesse no contexto insular, no âmbito das competências decorrente do processo autonómico da R.A.P, que, inevitavelmente, comportavam um potencial de desastre, ambiental, económico ou social, tendo em conta os valores ou objectivos da Autonomia Regional, compatibilizáveis com a defesa dos interesses das gerações futuras ou, em alternativa, relativamente àquilo que o Centralismo Estatal, por solidariedade, deixou de fazer, por ato discriminatório com intenção de dominação ou perpetuação da periferização da R.A.P.
Autonomia, para quem não sabe (e há muita gente que não sabe) pressupõe, também, liberdade a nível interno, liberdade de ser, de se organizar jurídica, política e administrativamente, e de viver de acordo com o seu próprio sentir.
Nos finais da década de 80 do século passado, o Príncipe definhava em termos populacionais, por falta de emprego para os jovens bem como de falta de bens essenciais, tendo em conta que, para este último caso, a comunicação inter-ilhas, por via marítima, era esporádica. Basta lembrar, por exemplo, que a comunicação inter-ilhas, através de avião, naquela altura, tinha uma frequência de duas vezes por semana. Tudo isto culminou com a revolta de 26 e 27 de dezembro, de 1981, que fez com que dezenas de filhos do Príncipe fossem presos e enviados para S.Tomé, onde foram interrogados num clima de autêntico terror.
Para além disso, nesta mesma altura, dezenas de pessoas, sobretudo jovens, num autêntico acto de desespero, fruto das condições socioeconómicas prevalecentes no contexto regional, completamente manietados como se estivessem numa prisão insular, fugiram através de pequenas canoas, sem qualquer rumo, sendo que muitos deles morreram em pleno Atlântico e outros foram encontrados, posteriormente, em alguns países da costa africana.
Por muito tempo, vindo da capital do país, ninguém queria ir para o Príncipe trabalhar, muito menos de férias, e os poucos que lá chegavam, designadamente para preenchimento de vagas na administração pública insular, como chefes de repartição, professores ou médicos, iam de castigo por qualquer delito administrativo cometido na capital ou por qualquer ato persecutório, de natureza social ou política, ou, em alternativa, por terem acabado de chegar ao país após uma formação num país estrangeiro. O Príncipe era uma espécie de lugar de “Degredo Suave”, condenado perpetuamente aos contornos de periferização, que o Centralismo Estatal institucionalizou de forma alegre.
Neste momento, a ligação inter-ilhas, de avião, é feita diariamente, e, na maior parte dos dias da semana, de forma bidiária, ou seja, duas vezes por dia, comportando duas companhias aéreas. Existem dezenas de pessoas que foram da capital do país e do estrangeiro com o objetivo de trabalharem nalgumas empresas privadas no contexto regional, designadamente na HBD que se tornou no maior empregador privado da região. Ou seja, com a Autonomia Regional, o Príncipe deixou de ser uma região de “Degredo Suave”, condenada historicamente à periferização, marginalidade e subalternidade, para passar a ser uma região que também recebe pessoas de várias origens que lá procuram organizar as suas vidas.
Nos últimos tempos têm sido realizados eventos internacionais, de grande envergadura, no contexto regional, como: o IV Congresso Internacional de Educação Ambiental dos Países e Comunidades de Língua Portuguesa, organizado pelo Governo Regional, que contou com a participação de 150 delegados de países lusófonos e da Galiza; a Assembleia Geral da UCCLA (União das capitais das comunidades de Língua Portuguesa); o XI Encontro da REDBIOS no âmbito da Rede Mundial de Reservas da Biosfera bem como o III Encontro da Rede das Reservas da Biosfera da CPLP. É óbvio que estes acontecimentos tiveram grande impacto internacional e contribuíram para projectar a imagem internacional da R.A.P. Eu que estou em Portugal, há mais de 40 anos, sendo do Príncipe, nunca presenciara, como nos últimos 15 ou 20 anos, reportagens, notícias e informações, especificamente sobre a R.A.P, nas televisões portuguesas.
Alguém acha que num contexto de Centralismo Estatal, puro e duro, como aquele que prevaleceu durante décadas, na organização administrativa do nosso Estado, estes acontecimentos internacionais seriam realizados na R.A.P? É óbvio que não, por várias razões, sendo que tal só foi possível decorrente da condição da R.A.P, como membro destas organizações, por vontade própria, tendo em conta o seu estatuto autonómico, como entidade territorial individual, no nosso contexto arquipelágico.
A participação, a nível externo, também é um dos pilares básicos do conceito de autonomia. Foram os acordos de geminação e de outro âmbito, realizados com múltiplas entidades externas, designadamente países soberanos, regiões autónomas que integram outros Estados e Câmaras Municipais, que permitiram que muitas dezenas de estudantes e profissionais de múltiplas áreas tivessem a possibilidade de melhorar as suas qualificações académicas e profissionais nos últimos tempos e que permitiram que a R.A.P recebesse apoios para desenvolvimento de determinados projectos, de âmbito empresarial, educativo e social.
Tendo em conta tudo o que foi exposto anteriormente, designadamente todas as tentativas, de âmbito decisório nacional, vindas do Centralismo Estatal, durante os últimos 50 anos, que tinham uma componente marcadamente discriminatória ou, em alternativa, comportavam um carácter impositivo, denunciador da criação de condições de degradação da situação económica, social e de periferização da R.A.P, e; por outro lado, atendendo as condições socioeconómicas prevalecentes no Príncipe, neste momento, comparativamente com aquelas que existiam antes da institucionalização da Autonomia Regional, não creio que exista uma única pessoa que resida no interior da referida ilha que deseje o regresso ao Centralismo Estatal, que quase “matou” o Príncipe.
E é sintomático, contudo, que sejam algumas pessoas que não vivem na R.A.P que manifestem este secreto desejo de reversão dos valores da Autonomia, pretendendo-o substituir por um Estado Central que já demonstrou para o que vem, tanto no contexto totalitário como em democracia, e transformou os cidadãos da R.A.P, durante 50 anos, em súbditos e reduzidos à obediência a um poder distante, impositivo e discriminatório, descartado de qualquer pretensão de respeito da vontade privativa da R.A.P.
É bom contudo, que as pessoas comecem a interiorizar, quer queiram ou não, que a R.A.P não é uma criação do Estado Central. Ela existe, como entidade dotada de idiossincrasia e identidade própria, anterior ao estabelecimento do Estado Santomense, com suporte num sentimento de um espaço geográfico, cultural e histórico individualizado por determinantes naturais, ecológicas, sociais e de outras natureza e por valores, crenças e uma memória colectiva comum.
A Autonomia é um exercício político e social em permanente construção. Não é algo estático, definido e estatuído de uma vez e para sempre. Torna-se pertinente, tendo em conta o projeto da R.A.P e o seu objetivo geral e histórico, que é a criação de condições para a satisfação da qualidade de vida das pessoas que vivem no referido contexto insular, que se criem as condições para dotar a região de uma Lei de Finanças Regionais e de reforço da solidariedade institucional, entre os órgãos de soberania nacional, tendo como propósito o desenvolvimento do país como um todo.
Adelino Cardoso Cassandra
11/05/2025
